SERTÃO D'ÁGUA / Marcos Quinan
No trabalho de foguista do Purus conheceu a linha toda, cada trapiche, cada ponto de lenha. Gostava do serviço no calor da caldeira, de andar pelo convés, dos ajudantes, de falar com os caboclos daqueles pontos mais escondidos. Gente que lidava com a juta, talhando seringa ou tirando lenha. Na sua primeira viagem encontrou no trapiche de Óbidos um guarda-livros que tinha vindo de muito longe e ficava olhando o rio e dizendo: – É um sertão d’água esse lugar... Sabá gostou tanto daquele modo dele falar: “sertão d’água”... “sertão d’água”... Foi também nessa primeira viagem que conheceu Maria Pipira exibindo os seios fartos num vestido de gorgorão azul moqueando a piramutaba e servindo aos passageiros e ao comandante Fontenele, enquanto o Purus aguardava a estiva. Ofereceu de longe a cuia, chamando. Ele foi, ela gostou, chamou pros fundos. Na rede se tiveram a primeira vez, daquele dia em diante virou rabicho. Na baía de Aramanaí, a vez primeira que viu os tapuios em muitas montarias ladear o Purus com os corpos pintados de jenipapo e urucu, ajaezados de penas, gritando ritmado. Imaginou guerra à toa, era festa deles. Adelmo riu de Sabá, enquanto moldava a balata no formato do macaco. Rapinha era nascido na Jaroca, mas falava que tinha sido criado na Ponta do Jariúba trabalhando barro. Adelmo ria: – Por isso os tamanhos pés, igual curupira... tal qual... tal qual... Sempre me fascinou a literatura regional: o conto, a poesia, o folclore, o romance. O mapeamento do Brasil, através dos escritores, está em minha estante. E Quinan faz parte dela com seu Sertão d’ Água da Região Norte. Seu linguajar amazônico me põe na Província do Grão-Pará, me faz conversar com os caboclos, me bota a navegar pelos rios. O romance é bonito e bem construído, com diversas estórias entremeadas em torno do personagem central Sabá do Talho que, no imaginário popular, virou visagem. Típico enredo saído da fabulosa capacidade do povo de transformar em lenda qualquer caso comum. Quinan mexe com isso com maestria. Mistura mídia, política e poder religioso com a crendice mais primitiva, a ingenuidade mais pura e o exagero mais curioso de quem, contando um conto, aumenta um ponto. Estão citados, no meio da trama, o dialeto índio, as meizinhas do mato, os barcos e barqueiros da Baía do Guajará, o mercado Ver-o-Peso, famoso até no Sul, onde se compra toda espécie de poção, garrafada, amuleto, comida e artesanato (bom de se reunir pra uma prosa regada a cachaça de infusão). Há também, além das assombrações dos ribeirinhos, das desavenças de amor, ciúme e traição, dos caciques da Imprensa, do Governo e da Igreja, a grande festa anual do Círio de Nazaré, o evento mais conhecido do lugar. Tudo isso já dá a dimensão do que é esse livro e do que encanta o seu autor. E aquilo que o encanta a mim me carrega numa viagem mágica. Embarquemos, pois, leitor, juntos, na canoa de Quinan, pra esse maravilhoso Sertão d’ Água.
Paulo César Pinheiro
Livros:
Sertão do São Marcos – Letra Viva – 2000
Sertão d’Água – Projecto Editorial – 2001
Sertão do Reino – Projecto Editorial/Scortecci – 2002/2020
Oração de Floresta e Rio e Outros Poemas... – Projecto Editorial – 2003
O Povo do Belo Monte – Projecto Editorial – 2004
Jeito de Sentidor (Meizinhas, Enversados e Recorrências...) – Scortecci – 2005
Um Lugar Chamado Primavera – Namazônia – 2016
Vaqueiro Marajoara (Encantarias, Chulas e Ladainhas...) – Scortecci – 2016
Encenações – Scortecci – 2017
Amastor – Scortecci – 2018
Subidos – Scortecci – 2019
Músicas:
Canção dos Povos da Noite – QRC – 1997
Dentro da Palavra – QRC – 1998
Rio do Braço – QRC- 1999
Abrigo Para um Violeiro Andante – QRC – 2002
São José Diligente – QRC – 2004
Um Lugar Chamado Roncador – QRC – 2008
Serviço:
Sertão D' Água
Marcos Quinan
Scortecci Editora
Contos
ISBN 978-65-5529-348-7
Formato 14 x 21 cm
140 páginas
3ª edição - 2021